quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Contaminada pela vida


Aos 60 anos e portadora do HIV, esta avó trabalha pela prevenção da aids na terceira idade.

Ivan Marsiglia

Beatriz, 60 anos, teve três homens na vida. O primeiro deu a ela quatro filhos. O segundo contaminou-a com o vírus HIV. O terceiro foi seu único e verdadeiro amor. Gaúcha de Porto Alegre, ela nunca usou drogas nem foi infiel a nenhum de seus maridos. Entretanto, o perfil “careta”, como ela própria define - tão distinto do que se costumava chamar “grupo de risco” da síndrome da imunodeficiência adquirida nos anos 80, quando a doença foi popularizada no Brasil pela voz aterrorizante de Hélio Costa no Fantástico - não a salvou das estatísticas da aids. A história de vida de Beatriz cabe no dado mais alarmante de um estudo divulgado essa semana pelo Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde. Entre 1996 e 2006, a incidência da doença entre maiores de 50 anos mais que dobrou no País, passando de 7,5 para 15,7 casos por 100 mil habitantes. Cerca de 70% dos pacientes são do sexo masculino e 75%, casados, que freqüentemente acabam por contaminar suas mulheres - uma vez que, por questão de hábito geracional, menos de 20% dos brasileiros nessa faixa etária usam preservativo.Educada nos rígidos padrões gaúchos, Beatriz emancipou-se como pessoa e como mulher a partir de encontros, decepções e tragédias entre as quais a aids não seria a pior - e, bem ao contrário, estaria presente quando a vida lhe proporcionou uma experiência única e madura com o amor. Além disso, seria a doença também a conferir sentido existencial e profissional à advogada de hoje, defensora intransigente e bem-humorada do “direito ao amor da pessoa com aids”, como diz. Missão a que dedica quase tanto tempo e carinho quanto a seus três netos, Bibiana, de 12 anos, Bruna, 9, e Bernardo, 4. Maria Beatriz Dreyer Pacheco, a Neca no apelido de família, estudou em colégio de freira e casou-se virgem no final da década de 50 com um rapaz vizinho de porta da família, escolhido por seu pai. “Eu tinha 19 anos”, lembra-se, “e achava estranho o fato de que não se podia nem pegar na mão antes de assinar o papel. Depois, tudo ficava permitido.” O tudo, no caso, não era lá grande coisa. Mas logo vieram os filhos, com suas alegrias, a diluir aquela vida “insípida, inodora e incolor”, como definiria anos mais tarde. Certa noite, pouco antes das bodas de prata do casal, o marido, gerente da Caixa Econômica Federal, confessou estar diversificando sua carteira de investimentos: no caso, em uma moça 15 anos mais nova. Mulher de família, mas com a faca na bota, Beatriz pôs o marido para correr no meio da madrugada. Recusou pensão alimentícia e pediu apenas que os bens do casal fossem para o nome dos filhos. Mas os tempos que vieram foram difíceis. “Eu era muito dependente”, conta. “Fui criada de uma maneira que me fazia pensar que não seria nada sem o casamento.” Desesperada, chegou a tentar o suicídio. Mas decidiu recompor a vida, a começar pelas finanças. Foi quando conheceu, em 1991, aquele que viria a ser seu segundo marido. Outro gerente, dessa vez do Banco do Brasil. “Ele me chamou e fez uma proposta bem de bancário: não era casamento, mas parceria. Tinha sido alcoólatra e sofria de cirrose hepática. Propôs ajudar a mim e a meus filhos se eu cuidasse dele.” O contrato virou um relacionamento de afeto e respeito mútuos, que durou dois anos e meio, até a morte do parceiro por complicações de saúde. Com os filhos criados e aos 42 anos de idade, Beatriz decidiu que não havia mais lugar para homens em sua vida. Isso até encontrar Carlos Antônio Aleixo, “o único de quem você pode publicar o nome, porque foi quem eu amei de verdade”, em março de 1996, na sala de espera do Tribunal do Trabalho, em Porto Alegre. Ele era auditor fiscal, também tinha filhos e estava recém-separado. Simpatizaram um com o outro e, no meio da conversa, deram-se conta de que já tinham se conhecido, 30 anos atrás. “Você não é a Neca?”, perguntou Carlos, que estivera na casa dos Pachecos quando era apenas um garoto de 14 anos e ela tinha 18. “Na hora, não me dei conta. Mas quando ele me telefonou, convidando para jantar, ouvi sua voz e senti um frio na barriga. Aí me dei conta de que estava gostando dele.” O jantar foi no sábado. Segunda-feira, os dois já estavam morando juntos. O ano que se seguiu foi maravilhoso para Beatriz e Carlos. “Vivi a sexualidade mais rica da minha vida entre os 50 e os 60 anos”, conta ela. “Nossos filhos notavam quanto éramos felizes e nos chamavam de ‘envelhecentes’”, ri. Foi em 1997 que ela começou a apresentar os sintomas. Uma infecção de pele persistente intrigou os médicos, até que um deles pediu a Beatriz, “só por segurança”, que fizesse um exame de HIV. “Tive um acesso de riso, porque àquela época eu também associava a aids à conduta moral das pessoas.” No dia de buscar o exame, chegou a brincar com os colegas antes de ir ao laboratório: “Vou lá buscar meu diagnóstico de aids”.Beatriz abriu o envelope na rua, a caminho de casa. “Quando li ‘reagente’, primeiro interpretei que fosse bom sinal, de que minha saúde estava reagindo, veja só. Aí dei dois passos e estanquei. Era um dia de sol como hoje, mas tive a nítida sensação de que havia uma nuvem negra na minha cabeça.” Como na maioria dos casos, é difícil determinar quando e como a infecção se deu exatamente. Beatriz acha que ela ocorreu devido às constantes transfusões de sangue feitas por seu segundo marido entre 1991 e 1992. “Ele não tinha nem saúde para me trair”, acredita. “Fui infectada por causa de relação sexual desprotegida. Ponto.”A primeira reação de Carlos foi de fúria. Gritou que a culpa era dela, que ele era filho único, iria morrer e deixar sua mãe desamparada. De repente, empalideceu e desabou. Ela teve que chamar uma ambulância. “Tinha certeza de que seria abandonada”, relembra. Mais calmo, Carlos disse que a amava, que os dois juntos fariam do limão limonada e enfrentariam o problema sem medo. A primeira infectologista consultada por Beatriz deu-lhe 18 meses de vida. Perguntada sobre qual deveria ser a conduta do casal dali para a frente - se podiam se tocar, se beijar, se era preciso separar as louças - a doutora limitou-se a dizer: “Sabe-se muito pouco sobre a aids até hoje”. Carlos submeteu-se ao exame, que, à época, levava quase 20 dias para ficar pronto. Deu negativo. Repetiu os testes 90 dias depois, com igual resultado: apesar de um ano de vida sexual freqüente, ele não estava infectado. Os dois eram um caso raro de casal sorodivergente. Carlos pediu desculpas a Beatriz e chorou de vergonha por tê-la acusado. Os filhos começaram a se despedir dela. Uma ocasião os quatro repetiram com a mãe o passeio preferido de infância: foram ao circo juntos e comeram algodão-doce. Natal e aniversários foram celebrados como se fossem os últimos. O casal também enfrentou o drama junto. Nos primeiros quatro meses, Beatriz e Carlos tiveram que pagar o tratamento do bolso. “Gastávamos US$ 2 mil por mês em medicamentos”, conta ela, que precisou se endividar e teve um automóvel tomado pelo oficial de Justiça. Quando o coquetel antiaids foi descoberto e o Ministério da Saúde passou a fornecê-lo gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, a situação melhorou. Os dois tiveram que redescobrir a vida sexual e aprender a usar camisinha. Também começaram um trabalho de militância contra o preconceito e pelo amor nos tempos de HIV. Beatriz fundou o Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, de prevenção e apoio aos infectados. Já em 1999, ela publicou no jornal do Gapa, Grupo de Apoio à Prevenção da Aids, um artigo intitulado Nós, as HIVéias, que tocava no tema tabu da infecção de mulheres de meia-idade casadas. Dispensar a camisinha nas relações estáveis? Fazendo o exame antes, tudo bem, ensinava Beatriz, contanto que a proteção seja regra nas relações extraconjugais: “Se pular a cerca, traz a guampa (chifre, no dialeto gauchês) sem o HIV pendurado nela”. Para mostrar que o contágio da aids não se dá senão por via sexual ou transfusão de sangue, os dois faziam palestras durante as quais bebiam água do mesmo copo e eram invariavelmente encerradas por um apaixonado beijo na boca. Tudo estava bem e o amor era mais forte do que a morte. A pior tragédia para Beatriz Pacheco, no entanto, ainda estava por vir. Em 2005, dirigindo para o trabalho, Carlos sentiu uma intensa dor abdominal. Tabagista inveterado havia décadas, teve diagnosticado um câncer de bexiga, em fase de metástase. “Ele sentiu muita revolta, não aceitava que nosso sonho não existiria e que ele estava morrendo”, conta Beatriz, que teve mais dificuldade de se conformar com o diagnóstico do marido do que com o seu: “Havia um acordo informal entre nós de que eu morreria nos braços dele”. A agonia durou dez meses e Carlos definhou lentamente. Uma ocasião, disse a ela: “Ter aids é fácil”. Seu olhar era de raiva e desesperança. Já na UTI, fez um pedido a uma de suas filhas: “Diga à Neca para ela não sair daqui porque a morte tem medo dela”. Após outra noite ao lado do amado no hospital, Beatriz saiu para tomar um banho e trocar de roupa. Foi o tempo de chegar em casa e o telefone tocar: Carlos tinha ido. Neca não estava, e a morte chegou. O homem que enfrentava qualquer desafio e sempre sabia ver o lado bom das coisas não estava mais ali. Mais uma vez, Beatriz sofreu, mas não perdeu a alegria de viver: “Muita gente nem sequer teve um grande amor na vida”.